A dimensão do olhar (Lendo o tarot com profundidade)

Para ver o mundo num grão de areia
E o céu numa flor silvestre,
Segura o infinito na palma da tua mão
E a eternidade numa hora.

William Blake

 

Conversando com uma amiga ouvi uma confissão muito humana por um lado, mas de certo modo estarrecedora para mim, vindo de uma pessoa que por tantos anos dedicou-se ao estudo e ao trabalho oracular com o tarot. Uma declaração mais ou menos assim: “Estou cansada de tantos anos de estudo com os símbolos, desenvolvendo e aprofundando minhas percepções pessoais para no fim ter de desvendar basicamente as mesmas coisas para as pessoas! Elas sempre querem saber de amor, dinheiro, a carreira… É maçante!…” Com todo o respeito pelo desabafo da minha referida amiga e colega, quero aqui lançar um outro olhar sobre essa questão.

Não nego, de modo algum, que de modo geral a pessoas são mesmo focais e as suas crises internas são desencadeadas por seus tropeços no mundo prático. Por questões meramente instintivas, em alguns casos, e culturais, na maioria dos casos, buscamos a felicidade nas mesmas coisas.

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Além da ilusão, a libertação da ilusão material.
O Julgamento no Osho Tarot.

Não há como ignorar que mesmo quando conquistamos os emblemas do status quo um vazio ainda se faz perceber e bem no fundo nos perguntamos: “Tenho tudo… por quê me sinto assim?” Com o tempo vamos nos acostumando a chamar isso de mau humor e vamos empurrando para debaixo do tapete dos dias, dos meses e anos até que um grande tropeço, como um divórcio ou demissão, nos faz olhar o contexto da própria jornada. Afinal não éramos tão felizes assim, não é mesmo? A felicidade é impossível quando não conhecemos as reais motivações dos nossos sentimentos e ações. Enquanto isso não ocorre vivemos uma vida mecanizada, reagindo sempre do mesmo modo que fomos educados, ou segundo as imagens que criamos de nós mesmos estimulados pelas respostas dos outros aos nossos atos. Vivemos uma vida como a dos elefantes de circo, animais enormes atados a pequenas cordas, porque um dia, quando filhotes, eles tentaram se soltar, e como não conseguiram, aceitaram que jamais poderiam!

A crise é um momento único para que possamos olhar de dentro da pequenez dos nossos valores cotidianos a real dimensão do que somos, e dos vários planos de consciência que nos envolvem todos os dias. O tarot é um sistema perfeito para olhar além dessa cortina materialista e limitada em que nos acostumamos a toldar nossas visões!

Lembro de uma moça que há muitos anos atrás veio me procurar para uma leitura de tarot. Ela estava grávida do primeiro filho e tinha algo por volta dos vinte e poucos anos. Comecei a leitura e o tarot revelou uma intensa crise familiar entre ela e o pai. A cliente então complementou dizendo que de fato o pai não aceitava o seu casamento com um rapaz mais jovem e imaturo em muitos aspectos, na opinião dele, é claro. Ela então decidiu seguir o seu caminho e foi trabalhar no mesmo ramo que o pai, ela trabalhava com ele até então, e passou a ser sua concorrente a partir daquele momento. Assim sendo casou-se saiu de casa e foi viver sua vida. Antes disso ela e o pai se amavam muito!

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As sombras da Alma. A Lua no Osho Zen Tarot.

.la disse que essa crise que eu tinha visto era real, mas que o que a trazia a uma consulta ao tarot era algo bem mais prático – os valores concretos e imediatos mais uma vez movendo a roda dos acontecimentos. Ela estava preocupada com o fato de que uma carga de mercadorias havia sido extraviada num acidente com um caminhão que vinha de uma cidade distante. Apesar de ter seguro, ela estava muito preocupada com o fato de não poder atender o prazo dos clientes e com a possibilidade perdê-los para os concorrentes.

Embaralhei as cartas mais uma vez e fui para a questão que havia sido colocada. Assim que deitei as cartas selecionadas na mesa, destacou-se o arcano de A Lua, e esse arcano parou o meu olhar. Não lembro até hoje dos outros arquétipos, mas apenas de olhar para a velha Lua, arauto dos medos, dos movimentos inconscientes e temas emocionais não resolvidos, veio a mim a pergunta: “Desde que saiu da casa do seu pai e decidiu montar o próprio negócio, qual foi o maior medo que a acompanhou desde então?” Ao que ela respondeu: “Sempre tive medo de que algo desse errado e eu tivesse de pedir a ajuda dele para não quebrar!”

Eis aqui o clássico caso da filhinha do papai que queria crescer e provar que podia fazê-lo sem o auxílio de ninguém. “E qual solução veio à sua cabeça nessa crise atual?…” Ela sorriu e imediatamente disse: “Procurar o meu pai.”

Tivemos uma longa conversa em que eu citei duas teorias sobre esse acontecimento. A primeira diz respeito a uma programação inconsciente que ela teria criado para si, para que um dia pudesse voltar e de algum modo resgatar a ligação com o pai, mesmo que com o orgulho ferido, pela imagem da filha necessitada a quem um pai super-protetor como ele nunca viraria as costas. A outra teoria que apresentei, e na qual acredito mais, é que somos todos parte de uma miríade de inteligências que se misturam entre si na imensidão do universo. Essas inteligências operam em conjunto para que todos nós encontremos o verdadeiro equilíbrio, aquele estado que nós humanos conhecemos como felicidade.

Essas inteligências operavam agora na sua vida para que ela resgatasse o amor paterno, indo além do orgulho de ambos, por ela, pela criança que viria, pelo pai que seria avô. Uma transição irreversível ocorrera e a menina era agora definitivamente uma mulher! A inteireza do seu ser requeria o resgate desse relacionamento.

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O Eterno
William Blake (1757-1827).

Essa foi uma das consultas mais profundas e reveladoras que eu concedi em muito tempo. Lembro da moça saindo da minha sala e me dizendo: “É, tudo acontece por um motivo mesmo!” O olhar que estava fixado na praticidade elevou-se ao apelo da sua alma. Duvido muito que dali em diante ela tenha se esquecido de que somos todos parte de uma consciência repleta de muitas inteligências que se movem em direção ao equilíbrio maior.

Os versos de William Blake com os quais iniciei esse texto, espelham bem as possibilidades que cada momento traz em si, e mostram a dimensão que os símbolos do tarot podem dar a esses momentos. Disse a minha amiga que a limitação que a incomoda nos outros pode estar refletindo a limitação a que ela mesma confinou a sua visão do tarot. Os julgamentos que fazemos todos os dias de modo quase automático podem se infiltrar na visão dos arcanos e passamos a julgar o que é superior e o que é inferior. Por via das dúvidas a aconselhei a ver tudo como sendo superior, um enigma cósmico aguardando ser desvendado. Espero que a tenha ajudado!

JAIME E. CANNES

Publicado no Clube do Tarô em Outubro de 2009